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Sobre jabuticabas e vira-latas

abril 2, 2014

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Não lembro quantos anos tinha quando ouvi, pela primeira vez, alguém falar que a jabuticaba existia apenas no Brasil. Só me recordo que o autor da frase o fez com certo orgulho, como se isso nos tornasse um país melhor (e como se não houvesse milhares de frutas endêmicas aqui e alhures).

É um orgulho inexplicável, a não ser que a pessoa em questão seja tarada por jabuticabas. Mas o fato é que ouvi essa conversa muitas vezes. Até que um dia a fruta se tornou vetor de outro argumento, tão esquisito quanto: o famigerado “é uma jabuticaba”. Se algo só existe no Brasil, basta incluir na expressão: “_______ é uma jabuticaba”.

Essa analogia é feita geralmente com conotação altamente negativa. O grande problema é que esse artifício deixou de ser um adereço argumentativo para se tornar um argumento por si só: algo é ruim porque só existe no Brasil. Ponto.

O argumento (ou a falta de) se tornou uma espécie de bíblia para uma espécie típica de nossas terras: o cidadão vira-lata. Para ele, o Brasil existe apenas para colecionar acontecimentos negativos e situações tragicômicas. E, desta forma, fazer sua população passar vergonha perante o mundo.

Como reconhecer um cidadão vira-lata

O cidadão vira-lata adora reclamar de tudo, mas para ele não basta criticar: é preciso enfatizar que o problema em questão é uma prova irrefutável do quão desmoralizado é o país. A rua está esburacada não porque o prefeito é um mau administrador ou porque a chuva foi forte demais, mas porque o Brasil é uma porcaria.

A linha de raciocínio deste personagem está escorada em um tripé de resmungos e constatações depreciativas, a saber:

1  Nada que exista somente no Brasil pode ser bom. Se fosse realmente algo positivo, existiria em outro país;

2 – A falta de parâmetros com outras nações não é impeditivo para decretar que somos a pior delas, em quaisquer aspectos;

3 – Quando alguma coisa ruim ocorre em outro país, pode ser uma exceção. Se acontecer no Brasil, certamente é regra.

 

Uma característica bem perceptível é a opinião preconcebida e imutável. Não adianta apresentar pesquisas, respeitadas internacionalmente, mostrando que o Brasil ocupa uma posição intermediária no ranking de corrupção, por exemplo. Para ele, somos o maior antro de ratos do mundo e se a pesquisa não chegou a essa conclusão é porque foi mal feita. Certo está ele, claro.

Talvez por isso o vira-lata goste tanto de telejornais policiais. Nosso personagem os assiste para manter bem alimentadas suas opiniões depreciativas. Ele precisa sustentar esse pequeno ódio dentro de si e se regala satisfeito a cada chacina, a cada assalto, a cada comentário selvagem do Datena ou do Marcelo Resende.

Ao cidadão vira-lata, o que importa é a opinião e danem-se os fatos. Se alguma informação vai ao encontro de seu pensamento, ele rapidamente o colhe, dissemina e os carimba com seus bordões preferidos de descontentamento. Se o fato é verdadeiro  ou não, é um detalhe.

“Ai, que absurdo”

Um exemplo urge ser lembrado. Recentemente, o Facebook foi varrido por postagens “informando” que Suzane Richthofen – condenada por planejar a morte dos próprios pais – havia sido designada para presidir a Comissão da Seguridade e Família da Câmara dos Deputados. “Só num país de merda como o Brasil isso poderia acontecer” foi o comentário recorrente. O fato de Suzane não ser deputada e estar presa na Penitenciária de Tremembé (SP) não significou nada para essas pessoas. Claro, nenhuma delas quer correr o risco de checar a informação e descobrir, para sua profunda tristeza, que a notícia não tem o menor fundamento. Vira-latas adoram boatos, não estrague sua alegria contando-lhes a verdade.

Para esses nossos amigos, não é preciso nem uma má notícia para endossar a imagem negativa que faz do país. Recentemente, fui testemunha de uma manifestação explícita de vira-latice, que me deixa pasmo até hoje. Em conversa com um casal de conhecidos, comentei sobre a série de vacinas que minha filha vinha tomando na época. Um comentário trivial, mas que mereceu um aparte insólito:

“Odeio vacina. É um absurdo. A gente fica com essa marca horrível no braço, que todo mundo enxerga de longe. No mundo inteiro, reconhecem a gente por causa disso. É a marca do brasileiro”.

Sim, meus amigos: a pessoa em questão conseguiu transformar algo absolutamente positivo (a imunização contra doenças mortais) em um motivo de vergonha. Consigo imaginá-la caminhando pelos corredores de um aeroporto, sendo ridicularizada por exibir uma horrenda e gigantesca chaga no braço direito.

Esse exército de descontentes atribui todos os problemas do país a outros. Eles nunca são responsáveis pelo que acontece na sociedade, mesmo fazendo parte dela. São sempre vítimas. Mal percebem que sua atitude é justamente uma das raízes de nosso atraso, porque incute o fatalismo, a sensação de que nada irá melhorar, porque é nosso destino ser uma nação miserável e problemática. Choram pitangas em vez de agir para tentar mudar o que consideram ruim.

Para eles, o Brasil não é um país feito de coisas boas e ruins, como todos os outros. É apenas um arremedo de nação, que coleciona vexames e infortúnios. E tendo como único consolo o sabor inigualável de uma jabuticaba.